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Categoria: Comunicado de imprensa
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Tendo sido conhecido o esboço de uma proposta de decreto-lei, preparado pelo Ministério da Justiça, de alteração ao Código Penal que implica a criminalização da difamação e tendo o Conselho de Imprensa como sua primeira competência, atribuída pela alínea a) do artigo 44.º da Lei N.º 5/2014, de 19 de Novembro, Lei da Comunicação Social, “promover a liberdade de expressão e de imprensa e a independência dos meios de comunicação social de quaisquer influências de indivíduos, grupos ou interesses políticos e económicos”, importa que este organismo tome uma posição sobre o mesmo.

Aliás, de acordo com o Artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 25/2015, de 5 de Agosto, que cria o Conselho de Imprensa e aprova o seu estatuto, este organismo deve ser “ouvido sobre a revisão do seu Estatuto, bem como sobre outras iniciativas legislativas no âmbito das suas atribuições”, o que é manifestamente o caso.

Assim, constatamos que este esboço, além de constituir um ataque à liberdade de expresão e de imprensa, pretende penalizar atos que já integram o Código Civil timorense, desrespeita a Lei N.º 5/2014, de 19 de Novembro, Lei da Comunicação Social e o Decreto-Lei n.º 25/2015, de 5 de Agosto, que cria o Conselho de Imprensa e aprova o seu estatuto, além de violar a Constituição da República Democrática de Timor-Leste.

Recordemos que a Constituição da República Democrática de Timor-Leste incorpora a Declaração Universal dos Direitos Humanos como critério interpretivo dos direitos fundamentais no seu Artigo 23.º e o país ratificou o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, através da Resolução do Parlamento Nacional n.º 3/2003, de 22 de Julho.

Aliás, o Artigo 9.º da CRDTL estabelece, no seu número 1, que “a ordem juridica timorense adopta os principios de direito internacional geral ou comum” para, no número 2, determinar que “as normas constantes de convenções, tratados e acordos internacionais vigoram na ordem jurídica interna mediante aprovação, ratificação ou adesão pelos respectivos orgãos competentes e depois de publicadas no jornal oficial” e o número 3 considera que “são inválidas todas as normas das leis contrárias às disposições das convenções, tratados e acordos internacionais recebidos na ordem jurídica interna timorense”.

Se é certo que o Artigo 36.º da referida Constituição determina que “todo o indivíduo tem direito à honra, ao bom nome e à reputação, à defesa da sua imagem e à reserva da sua vida privada e familiar”, também é verdade que o Artigo 40.º estabelece que “todas as pessoas têm direito à liberdade de expressão e ao direito de informar e ser informados com isenção” e que “o exercício da liberdade de expressão e de informação não pode ser limitado por qualquer tipo de censura”. Acrescenta ainda que “o exercício dos direitos e liberdades referidos neste artigo é regulado por lei com base nos imperativos do respeito da Constituição e da dignidade da pessoa humana”.

Partindo do pressuposto de que não existe hierarquia entre as diversas normas constitucionais, pode ser que, por vezes, no cumprimento destes dois direitos, à honra e à liberdade de expressão, ocorra que uma incidência delas sobre uma dada situação gere uma colisão entre os direitos fundamentais, situação em que o princípio da proporcionalidade se apresenta  como uma solução para proceder à compatibilização entre os mesmos. É para já este princípio de proporcionalidade que falta neste esboço de decreto-lei para alteração ao Código Penal, elaborado para salvaguardar o “direito à honra, ao bom nome e à reputação” mas que faz tábua rasa do direito à liberdade de expressão e de informação. Além disso, ao não criar um estatuto de excepção para os jornalistas, acaba por violar igualmente o direito à liberdade de imprensa e dos meios de comunicação social, consignado no Artigo 41.º da CRDTL, que no seu número 2 define que “a liberdade de imprensa compreende, nomeadamente, a liberdade de expressão e criação dos jornalistas”.

O número 1 do Artigo 1.º da CRDTL refere que “a República Democrática de Timor-Leste é um Estado de direito democrático”. O direito à liberdade de expressão é um direito fundamental, que se mostra como corolário da dignidade da pessoa humana, representando, dessa forma, um fundamento necessário à sobrevivência do Estado de direito democrático. Igualmente o papel da imprensa é fundamental para a manutenção do Estado de direito democrático pelo facto de desempenhar uma função essencial para exercer a capacidade crítica e o poder de controlo externo sobre os outros poderes, sendo eles o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Nesse aspeto, a liberdade de imprensa apresenta-se igualmente como essencial para assegurar o princípio do número 1 do Artigo 1.º da Constituição.

No preâmbulo do presente esboço é referido que, “aquando da elaboração do Código Penal, o legislador (…) optou por não conferir dignidade penal às ofensas que atingem aqueles direitos”, “haviam então decorrido menos de dez anos desde a independência nacional, estando ainda particularmente presentes as limitações às liberdades individuais que haviam vigorado durante a ocupação indonésia”. E acrescenta que, “naquele contexto, a referida opção política traduziu uma absoluta recusa do legislador em limitar de qualquer forma o exercício da liberdade de expressão, que por força do n.º 2 do artigo 40.º da mesma lei fundamental, não pode ser sujeito a nenhum tipo de censura”.

 

 

Ou seja, assume que, na altura em que foi elaborado o Código Penal de Timor-Leste estas ofensas não foram criminalizadas pois estavam ainda muito presentes “as limitações às liberdades individuais que haviam vigorado durante a ocupação indonésia”, o que significa que agora, passados vinte anos da independência, já se pode adotar os procedimentos da força que ocupou, torturou e aniquilou o povo timorense durante 24 anos, limitando direitos como o do “exercício da liberdade de expressão”.

A Constituição da República Democrática de Timor-Leste presta, no seu preâmbulo “uma sentida homenagem a todos os mártires da Pátria” e refere que os deputados da Assembleia Constituinte, legítimos representantes do Povo, “plenamente conscientes da necessidade de se erigir uma cultura democrática e institucional própria de um Estado de Direito onde o respeito pela Constituição, pelas leis e pelas instituições democraticamente eleitas sejam a sua base inquestionável, interpretando o profundo sentimento, as aspirações e a fé em Deus do povo de Timor-Leste, reafirmam solenemente a sua determinação em combater todas as formas de tirania, opressão, dominação (…) respeitar e garantir os direitos humanos e os direitos fundamentais do cidadão, (…) e estabelecer as regras essenciais da democracia pluralista, tendo em vista a construção de um país justo e próspero e o desenvolvimento de uma sociedade solidária e fraterna."

Tudo isto é esquecido ou ignorado com este esboço de proposta de alteração do Código Penal, não honrando os mártires da Pátria, não assumindo o compromisso de "erigir uma cultura democrática", pelo contrário, contribuindo para a “tirania, opressão e dominação”, não respeitando “os direitos humanos e os direitos fundamentais do cidadão”. As 200 mil pessoas, incluindo jornalistas, que perderam a vida na luta pela independência são mártires da liberdade de expressão, porque a independência é a manifestação mais alta da liberdade de expressão de um país digno e soberano. Defender a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa hoje em Timor-Leste constitui, não só o cumprimento de um direito constitucionalmente previsto, mas sobretudo uma responsabilidade para com a história do país.

Fica igualmente a dúvida sobre as motivações que levam a querer aprovar esta proposta de alteração do Código Penal tão rapidamente, com uma consulta pública apressada e em pleno estado de emergência quando a maioria da população concentra as suas preocupações com as medidas de prevenção ao Covid-19.

Finalmente, deve-se apresentar o caso de Portugal como exemplo a não seguir. O Código Penal português inclui igualmente um capítulo dedicado aos crimes contra a honra, em que são criminalizadas a difamação e as injúrias, assim como a ofensa à memória de pessoa falecida e a ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, enquanto a maioria dos países europeus já as descriminalizaram. O resultado é que o Tribunal Eurpoeu dos Direitos do Homem já condenou Portugal mais de 20 vezes, por entender que as condenações decididas pela Justiça Portuguesa violam o artigo décimo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Ou seja, este organismo europeu tende a valorizar mais o direito à liberdade de expressão do que o direito à honra e ao bom nome. Há mesmo uma convenção da assembleia do Conselho da Europa que considera feudal e obsoleta a legislação portuguesa e defende que esta “deve ser reformulada de forma a prever normas claras de defesa, incluindo a verdade, a publicação razoável e a opinião, e qualquer indemnização atribuída deve ser razoável e proporcional ao dano causado”.

Contudo, o esboço desta proposta de decreto-lei de alteração ao Código Penal é uma cópia integral do capítulo IV do Código Penal da Guiné-Bissau, que não parece igualmente constituir um bom exemplo, sendo um dos países lusófonos que estão entre os piores classificados em termos de liberdades políticas e civis, segundo organizações internacionais. A Liga Guineense dos Direitos Humanos, por exemplo, tem apontado a situação dos direitos humanos no país como "precária e preocupante" e aponta recuos em aspetos essenciais, como atentados à liberdade de imprensa.

O esboço desta proposta de decreto-lei, preparado pelo Ministério da Justiça, de alteração ao Código Penal introduzindo neste os crimes de difamação e injúrias, o crime de ofensa ao prestígio de pessoa coletiva ou equiparada, e o crime de ofensa à memória de pessoa falecida, é feito, segundo o preâmbulo do mesmo, “em termos que garantam o respeito pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, e assegurem a coerência do sistema jurídico-penal” mas acaba por não respeitar o direito à liberdade de expressão e informação e o direito à liberdade de imprensa e dos meios de comunicação social.

Ao longo dos anos de ocupação, muitos foram encarcerados por causa da livre expressão. Para valorizar e dignificar os sacrifícios temos que garantir que não pode haver mais um cidadão encarcerado por se expressar ou por ter uma opinião diferente.

Portanto, a posição do Conselho de Imprensa é clara:

 

Criminalização da difamação, NUNCA!

 
Díli, 9 de Junho de 2020